O que tem asas, piloto e é rodeado de satélites? Para os brasilienses, há duas possíveis respostas a essa pergunta: um avião ou a capital federal. Como as semelhanças se confundem, é como se Brasília pudesse ser representada por uma aeronave.
A ideia de que Brasília tem formato de avião está difundida entre grande parcela da população do planalto central. Nas gerações mais novas, há ainda outra imagem - a de que a capital federal foi inspirada, na verdade, nas borboletas.
Especialistas, no entanto, afirmam que o autor do Plano Piloto de Brasília, Lucio Costa, não se espelhou em nenhuma dessas imagens ao projetar a cidade. No relatório que escreveu para justificar sua proposta, o arquiteto e urbanista define Brasília como um “sinal da cruz”.
“Nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz”.
Esses eixos foram depois arqueados para se adaptar ao relevo da região, segundo Lucio Costa. “Procurou-se depois a adaptação à topografia local, ao escoamento natural das águas, à melhor orientação, arqueando-se um dos eixos, a fim de contê-lo no triângulo equilátero que define a área urbanizada”.
Desenho de Brasília inspirado em avião: mito ou verdade?
Rogério Andrade é professor de Arquitetura e Urbanismo do UniCEUB e estuda a capital federal - a construção e o desenvolvimento dela - há dezenove anos. Andrade explica que Brasília foi inspirada nas cidades lineares.
“Os textos, o relatório do Plano Piloto, a fundamentação do projeto, não mencionam isso [avião ou borboleta] em momento algum. Brasília vem de formas de cidades, vem do repertório do urbanismo moderno. As cidades lineares, organizadas ao longo de eixos, eram um tema que estava em discussão no começo do século XX, a estratégia de você dispor cidades em dois eixos que se cruzam”, define.
Dualidade nos eixos
O professor emérito da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UnB José Carlos Coutinho, compartilha de uma visão similar. “Ele [Lucio Costa] explica direitinho no relatório. Primeiro, uma cruz, que é a forma de assinalar um lugar. Depois, ele arqueou um dos braços da cruz para que ela se tornasse compatível com o relevo, com a topografia", explica.
Ainda de acordo com o professor, "a cruz é uma coisa que surgiu naturalmente porque a cidade era para abrigar duas funções principais, a função monumental/administrativa e a função residencial. O que melhor resolvia essa dualidade eram dois braços de uma cruz”.
O imaginário da população, que associa Brasília ao ícone de um avião, também não é ao acaso. Os elementos parecem confirmar essa semelhança que também é visual, pode ser vista pelo alto - ou, com abstração, dos próprios croquis de Lucio Costa. Mas os nomes dados às metades desses braços da cruz, “Asa Sul” e “Asa Norte”, levam à reprodução da ideia.
Contudo, Andrade enfatiza: “Asa Norte, Asa Sul, assim como Ala Norte, Ala Sul, são designações muito comuns para projetos de arquitetura, projetos de urbanismo. Na língua inglesa e também francesa, a gente tem uma palavra só pra "asa" e "ala". São termos equivalentes. Em língua portuguesa a gente tem eles distintos, mas a maior parte das publicações, que até formam a cultura urbanística a que o Lucio Costa se refere, você tem a mesma palavra para os dois termos”.
Plano Piloto
Ainda há quem acredite que o termo “Plano Piloto” é também uma referência a uma aeronave. Alguns vão além. Dizem que a Praça dos Três Poderes seria a cabine desse comandante, já que é lá o Palácio do Planalto.
“Essa expressão "Plano Piloto", a primeira vez que eu ouvi na história do urbanismo foi utilizada pelo urbanista francês Le Corbusier, que também é muito importante pra arquitetura moderna brasileira. O Le Corbusier fala de um "Plano Piloto" em francês, e a expressão foi apropriada pelos arquitetos brasileiros da época para designar o plano de Brasília. (...) Era um plano piloto, um plano inicial”, explica Andrade.
A aeronave, no entanto, já tem uma concorrente disputando o título de musa inspiradora para capital federal: a borboleta. Em uma entrevista dada a um jornal impresso, Lucio Costa teria rebatido a pergunta de um jornalista que questionava se Brasília tinha formato de avião dizendo que “estava mais para uma borboleta”.
Sentimento de pertencer
Mas, para os especialistas, tratava-se de uma metáfora. “Uma cidade, especialmente Brasília, se relaciona com o lugar em que ela está, com o terreno, e o funcionamento da cidade, a vida da cidade, tem mais a ver com uma analogia biológica, orgânica, mais com um organismo do que com uma máquina. Eu acho que é isso que ele estava querendo dizer”, afirma Andrade.
“Ele [Lucio Costa] se referiu de uma forma lírica. Quando falavam nisso, ele dizia: “Mais parece uma borboleta”. Não é que ele tenha se inspirado numa borboleta, era uma forma carinhosa, delicada, de ele se referir a Brasília”, analisa Coutinho.
O processo de procurar semelhanças no formato de uma cidade com objetos que compõem o cotidiano da população faz parte, na visão dos especialistas, do sentimento de pertencimento. É como se, ao dizer que Brasília é um avião, todos se colocassem como tripulantes.
É o que diz, por exemplo, o professor Andrade. “Todas essas comparações, essas metáforas, eu acho que são muito bem-vindas, são formas de a gente trazer aquela forma diferente de cidade pra nossa realidade, para as nossas impressões. É uma forma de você até criar vínculos afetivos com a cidade”.
Fonte: G1