Brasília é uma cidade de peculiaridades. Os que pisam pela primeira vez nas terras da capital federal encontram paradoxos e lógica incomuns às cidades “convencionais”. Logo de cara, a tesourinha, uma dessas contradições planejadas, dá um nó na cabeça dos forasteiros: se o objetivo é ir para a direita, deve-se, primeiro, virar à esquerda.
A Definição
Tesourinha: o recurso semântico empregado na denominação é de natureza metafórica, porque os traços de conteúdo desse termo aproximam-no do objeto tesoura pequena. Tesourinha é uma pista que dá acesso às superquadras, cortando o Eixo-Rodoviário-Residencial.
A descrição do termo é resultado do que começou como uma dissertação de mestrado e se transformou no primeiro dicionário on-line de termos brasilienses. O estudo linguístico foi feito para organizar e definir as famosas siglas que Brasília adora: SQS, SQN, SCLN, SHIS, estão todas lá. Feito pela mestre em linguística e professora de letras da Universidade de Brasília (UnB) Flávia de Oliveira Maia Pires, o glossário contava com 255 termos em sua primeira versão. A adaptação para a internet ganhou mais 45 termos. “Quando terminei a dissertação, em 2007, me preocupei com os setores, mas na versão on-line acrescentei os monumentos, os personagens que estavam aqui desde o começo e o que temos em termos de estruturas”, detalha.
As agulhinhas (vias de acesso ao Eixão a partir do Eixinho) foram um dos elementos que precisaram ser incluídos na versão mais moderna do dicionário. De 2007 para cá, outras coisas mudaram, como o nome do Estádio Mané Garrincha — que agora se chama Estádio Nacional Mané Garrincha. A importância urbanística e arquitetônica do Plano Piloto, o fato de a terminologia já ser usada há quase meio século e ainda não ter sido sistematizada e ainda a carência de pesquisas e publicações científicas na área foram os principais motes do levantamento. Além da curiosidade, é claro. Carioca, a pesquisadora conta que não entendeu o desconhecimento do próprio brasiliense a respeito da cidade. “Achei estranho quando perguntava informações e as pessoas não sabiam dar referências precisas”, relembra.
Os alunos de Flávia também não estavam se dando muito bem no quesito orientação. Professora de português como segunda língua, ela conta que sofria para ensinar a estrutura de Brasília para os estrangeiros. “Associei a minha dificuldade com a deles e comecei a pesquisar sobre o assunto”, resume. A falta de informações sistematizadas sobre as siglas da cidade e os endereços foi o primeiro desafio. A partir do projeto feito por Lucio Costa, de documentos coletados no Governo do Distrito Federal, na Unesco e de reportagens de revistas direcionadas a turistas, a pesquisadora conseguiu reunir material suficiente para encontrar a definição correta de cada termo.
Assim que encontrar uma editora interessada, Flávia diz que o próximo passo é transformar o projeto em um dicionário físico. “Quero que seja uma obra de divulgação, porque há em Brasília várias pessoas que vêm profissionalmente, além de muitas embaixadas.” Com explicações simples, a ideia é que qualquer pessoa possa entender o que é Eixão, Eixinho, tesourinha ou bloco sem que precise ser levada até lá.
A Criação
A tesourinha já estava nos planos de Lucio Costa quando Brasília ainda era apenas uma pretensão. Carlos Magalhães estava lá no dia em que as abas dos Eixinhos foram criadas. Em 1959, o então arquiteto recém-formado chegou à cidade. Oscar Niemeyer, Joaquim Cardozo (engenheiro de cálculo) e Israel Pinheiro transformaram o estreante em um homem perdidamente apaixonado por Brasília. Para falar sobre as tesourinhas, ele faz questão de voltar aos tempos em que a capital ainda estava tomando forma. “Quando Brasília foi feita, era para a cidade exportar desenvolvimento”, explica. “Brasília não podia ser consequência do desenvolvimento do entorno, mas o vetor.”
As tesourinhas são uma marca registrada de Brasília. Presentes nos planos de Lucio Costa, as tesourinhas – trevos em níveis diferentes – foram adaptadas para a cidade para evitar o cruzamento de vias e ajudar na circulação de veículos. De acordo com o professor de Arquitetura do século 20 do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) Rogério Andrade, as tesourinhas eram um recurso tradicionalmente usado em rodovias.
Para a adaptação das tesourinhas aos limites da cidade, o professor lembra que Lucio Costa teve influência do arquiteto franco-suíço Le Corbusier. “Você vai ter as tesourinhas incorporadas pelo Lucio Costa dentro de uma cidade, para além do ambiente rodoviário, nesse contexto, baseado nas ideias de Le Corbusier, para que se evitasse o cruzamento de vias para ter uma circulação fluida.”
O arquiteto José Galbinski diz que as tesourinhas fazem um importante papel de ligação de vias na cidade. “É a função de dar acesso às superquadras e aos comércios locais a quem vem dos eixos, por exemplo. Isso funciona perfeitamente”, avalia.
Fonte: Correio Braziliense